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Após infância difícil, barbeiro vira ídolo em Santo André

Paizão, Maurício da Silva formou 130 jovens na Vila dos Ciganos; já tem seis prêmios na carreira

Francisco Lacerda
24/03/2019 | 07:42
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Jovem, morador da periferia, envolvido com drogas, bebidas e fazendo “mais um monte de coisa ruim”. Assim foi o passado de Maurício da Silva Alvarez, o Du Corte, hoje com 30 anos. Tinha motivos para “dar errado, virar estatística”. Caçula de quatro irmãos com infância sofrida na Vila Sacadura Cabral, em Santo André, cidade onde nasceu, viu os três mais velhos serem mortos por envolvimento com drogas, principalmente o crack, roubos e assaltos.

“Um dos meus irmãos, analfabeto, ficou 17 anos preso. Era escravo do vício. Os outros dois foram assassinados por causa do crack. Eles eram presos, fugiam. Minha mãe os acorrentava e eles imploravam e ofereciam até bicicleta para que eu os soltasse. Tinha vontade de soltar, mas sabia que estavam fazendo coisa errada.”

Maurício estava no mesmo caminho e até a própria família o desanimava. “Diziam que ‘não daria certo’”. Nessa época, engraxava sapatos, recolhia papelão para vender, ‘tomava conta’ de carro na rua e já cortava cabelo. Mas o que ganhava era só para ‘droga, loucura, noitada’. Não sobrava dinheiro nem para o sustento da família. Essas lembranças, diz ele, até ‘dão arrepio’. “Ia para São Caetano em avícola pegar resto de frango para poder ter o que comer.”

Revela que não tinha perspectiva de dias melhores. Até que teve de ‘acordar’. Enfim, começaria a viver. Viu a sorte lhe sorrir. Ou melhor, “Deus virou a chave, porque só Deus para virar a chave para tudo na vida da gente”, diz ele. “Um dia minha mulher disse: ‘Que exemplo você é para nossos filhos? Como vai ser o espelho dos seus filhos agindo assim?’ A partir de então, me avaliei e falei para mim mesmo: ‘Cara, você está errado’. Vi que precisava dar exemplo aos meus filhos e ser orgulho para minha mulher e minha mãe.”

Essa ‘prensada’ foi o divisor de águas na vida do rapaz. Afastou-se das más companhias, focou na família, entrou de cabeça no ramo de barbearia-cabeleireiro e se dedicou, conta ele, “ao máximo”. Foi à luta. Estudou. Especializou-se.

Passou a trabalhar em instituição na cidade. Desse período lembra que ‘muitos jovens’ o procuravam para saber de sua história. O barbeiro revela que eram meninos sem esperança, mas, ao ouvirem-no, empolgados contavam o que haviam passado e a vontade de querer ‘sair dessa vida’. “Viam em mim fonte de inspiração. Decidi que precisava ser mais que isso, tinha de estudar mais para poder passar a eles o conhecimento adquirido.”

Assim foi. O que ganhava investia na carreira. Em meio às mudanças de comportamento, casou-se e fundou a Barbearia MC’Styllus, em 2011, na Vila dos Ciganos, em Utinga, Santo André, já que, segundo ele, é a profissão da moda. Está no endereço até hoje.

Em 2017, surgiu a ideia de repassar aos jovens da vizinhança o que havia aprendido na profissão, “a sabedoria que Deus me deu”. Abriu o curso. Cobrava dos que podiam pagar. Ajudava os que não tinham condição. É o paizão da garotada.

“Na minha primeira turma tinham garotos traficantes, ladrões que faziam arrastão, viviam no mundo das drogas, eram problemas para os pais. Ensinava a eles que a gente tem de olhar para os pais como nossos heróis. Eles nunca querem o nosso mal. Que é em casa a primeira lição.”

Casado com Juliane Gonçalves Pires, 26, Maurício é pai do Elvis Rafael, Enrico Micael, Victor Pietro, da Micaele e daqui três meses chega o Gustavo. Está na ativa quatro vezes por semana. Às sextas e aos sábados, faz barba e corta cabelo; aos domingos e às segundas, dá aula. Os outros dias diz deixar para curtir com a família e descansar, já que problemas de saúde o incomodavam. “No início, trabalhava das 7h às 2h, o que fez com que adquirisse úlcera venosa na perna esquerda e entupimento das safenas pelo tempo que ficava em pé”, conta, apontando ao local.

Questionado se os filhos seguirão o caminho das tesouras, máquinas e navalhas, o barbeiro diz não influenciar, mas vê essa possibilidade. “O mais velho (11 anos) sempre fala que quer ser igual ao pai, fazer barba, cortar cabelo de artista e ser premiado.” 

Tesoura premiada também no trabalho social

Em 2017, Maurício Du Corte, como é carinhosamente chamado na Vila dos Ciganos, em Utinga, abriu as portas do estabelecimento para ensinar o ofício aos jovens carentes da comunidade local e vizinhança. Sempre ao som de músicas evangélicas. 

Com formação pela Federação Brasileira das Escolas Profissionais de Cabeleireiros e Similares do Estado de São Paulo, órgão que regulariza o profissional para que possa dar o certificado aos alunos, o ‘mãos de tesoura’ afirma já ter formado “mais de 130 pessoas, todas atuando na área”.

Mais que um professor, ele é ídolo para os garotos. Em comum a todos eles o objetivo de repetir o sucesso de quem os ensinou. Ter passado e mesmo ainda estando nos bancos na barbearia de Maurício mudou a vida de muitos desses meninos. “Transmitir a eles um pouco da minha história é minha inspiração. Não quero que vivam o que vivi.”

Renan Antunes, 27, é marceneiro e diz estar cansado de ‘tomar chapéu’ na profissão, de trabalhar e não receber. Morador da Vila Metalúrgica, casado e pai de garotinho de 4 anos, mostra ser fã do barbeiro. “Somos amigos há 15 anos. Resolvi fazer o curso para mudar de profissão e porque Maurício é minha fonte de inspiração.”

Estudante do 2º ano do ensino médio na Vila Metalúrgica, Vinícius Santos, 16, diz não saber o que seria da vida não fosse a barbearia. “Sempre tive vontade de ser barbeiro. Ouvia muito falar do Maurício, já que moro aqui do lado. Com os ensinamentos dele espero ter futuro na profissão. Não penso em ser outra coisa.”

“Não fosse o curso eu estaria no mundão”, sentencia Wellington Gonçalves Bernardini, 22. O jovem revela que estava em momento que não sabia o que fazer da vida, ‘perdido’. Às vezes ajudante de pedreiro, às vezes de carga e descarga e, outras, o que aparecia. Não tinha profissão. 

“Estava acabado antes mesmo de começar. Ele me viu, ofereceu o curso, ajudou, pagou passagem (de ônibus), incentivou, me fez atravessar o medo, porque eu não sabia pegar na tesoura, nem na máquina, nem na navalha. Ele me tirou o medo, porque o medo faz a gente desistir do que quer. Ele me colocou a segurança. É iluminado.”

Formado e atuando na área, Felipe Henrique Rodrigues Santos Correia, 17, é outro jovem admirador de Maurício, a quem conheceu em uma das vindas a Santo André, onde passa uma temporada com a mãe. Intercala a morada na casa do avô, em Curitiba, no Paraná.

“Sempre tive sonho de ser barbeiro. Quando criança brincava com isso, mas não levava a sério até conhecer o ‘professor’. Me ensinou tudo que sei. Hoje sou profissional graças a ele. Maurício fez história aqui (Ciganos). É monstro.”

Reconhecimento se deve à dedicação: ‘Amo o que faço’

Escolhido seis vezes entre os melhores barbeiros do Brasil, Maurício alcançou o reconhecimento na carreira devido à dedicação ao ofício. O primeiro prêmio foi em 2017. “Fui convocado pela revista Top Model para a premiação Navalha de Ouro para representar Santo André. Nunca imaginei que um dia estaria ali.”

Também faturou Navalha de Ouro, Tesoura de Ouro, Tesoura de Prata e o Oscar da Barbearia, todos em 2018. Neste ano tem mais, diz.

“Já peguei Navalha de Diamante neste ano. Mês que vem (abril) estou de novo na disputa do Tesoura de Ouro.”

Evangélico, agradece por todas as honrarias, mas, claro, tem a que considera especial. “O Navalha de Ouro de 2017. Foi o pontapé inicial. Vi que tinha capacidade.”

O barbeiro encerra dizendo que “Deus o fez ter condição de se recuperar e seguir bons caminhos”. “Por mais que a gente seja pequeno, pouco visível, pode chegar a lugares em que nem ao menos sonhou. Basta ter fé. Amo o que faço. Amo ser barbeiro.” 




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