Em 12 anos, região registrou 677 óbitos por policiais; jovens pretos e pardos foram maioria
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O ano era 2022. Dois jovens, sem antecedentes criminais, roubam uma moto no bairro Piraporinha, em Diadema, simulando uma arma com a mão, por dentro da blusa. O policial militar à paisana, João Batista Manuel Júnior, vê o crime e começa a perseguir os adolescentes. O piloto da moto colide com um poste. Um deles foge e o outro tenta se esconder atrás de um poste. O PM atira contra o garoto que correu, depois vira na direção de Mateus Henrique Reis de Lima, com 14 anos à época. O adolescente se ajoelha, coloca as mãos na cabeça e fica de costas para o agente.
Mesmo rendido, o jovem leva dois tiros nas costas, é socorrido ao hospital, mas não resiste aos ferimentos. O amigo, que conseguiu correr, também foi alvejado por dois tiros em um dos braços, que o fizeram perder o movimento do membro. Toda a ação foi registrada por câmeras de segurança, imagens nunca assistidas pela mãe do garoto morto, Fernanda Andrade de Reis, 45.
“Apesar das imagens, o policial continuou afirmando que foi troca de tiros, mesmo não tendo encontrado nenhuma arma com os dois. A palavra deles vale mais que a nossa, tive que provar que ele foi executado. Não tem pena de morte no País, mas mataram meu filho. Meu menino tinha que ir preso, não morrer, crime não resolve crime”, lamenta a mãe, Fernanda. Mateus era o caçula de oito filhos.
O soldado foi condenado no ano passado à pena de dez anos de reclusão e três meses de detenção em regime inicialmente fechado. Segundo o TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo), houve recurso, mas a sentença foi mantida. O condenado só foi exonerado da Polícia Militar em 28 de fevereiro deste ano.
“Ele roubou um bem material, que foi devolvido ao dono, enquanto este PM tirou o bem mais preciso de alguém, que é a vida. Se meu filho merecia morrer por roubar, o que ele merece, então?”, questiona a mãe do adolescente assassinado, que saiu de Diadema, pois alega que estava sendo ameaçada por policiais, com inúmeras viaturas rondando seu endereço, que ficava há 800 metros de onde ocorreu a morte do filho.
Mateus foi uma das 677 pessoas mortas em decorrência de intervenção policial no Grande ABC nos últimos 12 anos (2013 a 2024), período com dados disponíveis. Desse total, 91,2% dos óbitos foram cometidos por policiais militares, sendo 59% em serviço e 79,9% em via pública. Os indicadores da SSP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) revelam ainda o perfil dos mortos. Jovens (56,7%), do sexo masculino (99,8%) e pretos e pardos (64%) foram maioria. Nos dois primeiros meses deste ano, a região já registra cinco mortes cometidas pela PM (Polícia Militar).
A articuladora Roberta Kelly Amorin de França, da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio ABC, coletivo que presta apoio a familiares de vítimas de violência policial, diz que nunca é dado à pessoa assassinada pelo Estado o direito de ser vítima. “O agente de segurança sempre está se defendendo, mas quem morre é o morador periférico, jovem e preto. Os dados de violência policial nos territórios periféricos, no mínimo, deveriam gerar suspeita com relação a esse argumento de defesa”, argumenta Roberta.
O ex-PM Leandro Barcelos Prior, 33, afirma que do ponto de vista normativo, não existe qualquer orientação institucional formal que autorize a prática da chamada ‘atirar primeiro e perguntar depois’ e que as instituições públicas de segurança são, em sua essência, regidas por preceitos constitucionais que determinam o uso proporcional e progressivo da força, com respeito à vida e à dignidade da pessoa humana.
“Dito isso, é necessário reconhecer que a prática social nem sempre reflete o que está previsto nas normas. O racismo estrutural, a marginalização de territórios periféricos e o déficit de políticas públicas integradas acabam por produzir padrão reiterado de vitimização dos mais economicamente vulneráveis, de jovens pretos e pardos, o que não pode ser naturalizado nem ignorado pelo Estado”, diz o ex-agente de segurança.
REAÇÃO?
Sobre os óbitos em decorrência de intervenção policial, a SSP destaca que a atual gestão investe na formação contínua do efetivo, no uso de armas de menor potencial ofensivo e na revisão de procedimentos operacionais para reduzir a letalidade policial. No entanto, o número de mortos no Grande ABC nos dois primeiros anos do governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) cresceu 77,7%, passando de 27 óbitos, em 2022, para 48, em 2024. Em 2023, foram 32.
Além disso, a Pasta pontua que em todos os casos de mortes decorrentes de intervenção policial são instauradas comissões de mitigação de riscos, e as ocorrências são investigadas pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento das corregedorias, do Ministério Público e do Judiciário.
“É importante ressaltar que o confronto decorre de uma reação do criminoso à ação policial, estejam os agentes equipados ou não com câmeras corporais. A atuação das forças policiais é pautada por critérios técnicos e territoriais, sem qualquer viés relacionado à cor da pele, gênero ou condição social. No primeiro bimestre deste ano, as mortes decorrentes de intervenção policial caíram de 146 para 92 no Estado, revertendo a alta dos meses anteriores”, reforça a SSP, por nota.
Relatório do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicado neste mês, mostra que entre 2022 e 2024, houve redução de 46% no número de Conselhos de Disciplina, responsáveis por julgar praças que cometeram infrações ou crimes. O documento destaca ainda a diminuição de 12,1% no número de processos administrativos disciplinares, e a queda na quantidade de sindicâncias e IPMs (Inquéritos Policiais Militares).
Jovem foi comprar bolacha na favela e apareceu morto na Represa Billings
Lucas Eduardo Martins dos Santos, na época com 14 anos, foi comprar bolacha na favela do Amor, em Santo André, e dois dias depois seu corpo apareceu boiando no Parque do Pedroso, um dos braços da Represa Billings. Para os familiares, o menino foi morto por policiais militares. A PM nega e o laudo do IML (Instituto Médico Legal) apontou morte por asfixia mecânica compatível com afogamento, sem sinais de lesões traumáticas, segundo informou a SSP (Secretaria de Segurança Pública).
Os parentes alegam que PMs estiveram no endereço do menino cerca de duas horas antes dele sair de casa, perguntando quem morava na residência. A mãe de Lucas, Maria Marques Martins dos Santos, 44, teria ouvido a voz do jovem responder “eu moro aqui”, a poucos metros da casa.
Seis anos após o caso, a família ainda busca por justiça e continua sem respostas do culpado pela morte do garoto. A investigação foi conduzida na época pelo SHPP (Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa) de Santo André e o inquérito policial foi finalizado e encaminhado ao Poder Judiciário em julho de 2022 – o caso foi encerrado por falta de provas. Em 2019, dois policiais militares foram afastados das ruas.
“A Justiça para pobre não existe. Meu filho estava cheio de hematomas pelo corpo, todo machucado e só de cueca. Encontramos parte das roupas dele em frente a uma escola próxima de casa. Como uma criança que sai para comprar bolacha vai parar nua em uma represa? A vida da nossa família acabou e o Estado não se importa em esclarecer esse crime. O Lucas era um menino alegre, não era ladrão, não era criminoso, o sonho dele era ser bombeiro”, desabafa a mãe do jovem. Após a morte do filho, Maria vive à base de remédios, que a auxiliam a controlar a ansiedade e a ajudam a dormir.
A família alega que, depois do desaparecimento de Lucas, policiais militares rondaram a casa do jovem e gritaram “Cadê o Lucas?”. A ação seria uma provocação aos parentes que utilizaram a frase durante protestos realizados pelo bairro, nos dias em que o garoto estava sumido.
Violência estrutural da segurança pública afeta a sociedade e os policiais, diz ex-PM
O atual cenário da segurança pública é marcado por um quadro estrutural de violência que afeta tanto a sociedade civil quanto os próprios profissionais. É isso que acredita o ex-PM Leandro Barcelos Prior, 33 anos, que deixou a corporação em 2021em razão de transtornos mentais, como ansiedade e depressão, desenvolvidos em decorrência de perseguição administrativa em virtude da sua orientação sexual.
“O Brasil ocupa posições lamentáveis em rankings globais no que tange à letalidade policial e, igualmente, no número de agentes vitimados em serviço ou fora dele, bem como em dados recordes de suicídio de PMs em decorrência da perseguição dos oficiais (comandantes). Um policial militar não é uma máquina, é um humano. Trata-se de uma contradição grave a sociedade cobrar desses profissionais a defesa intransigente dos direitos constitucionais da população”, pontua Prior.
Dados do 18º Anuário de Segurança Pública, de 2024, corroboram com o pensamento do ex-PM. Segundo o documento, o número de policiais mortos por suicídio superou os de agentes assassinados em confrontos, seja em serviço ou fora dele, no Brasil em 2023. Foram contabilizados 110 suicídios de agentes, ante 107 mortes em confrontos.
De janeiro de 2013 a junho de 2023, foram registradas 20 mortes de policiais militares no Grande ABC, de acordo com dados da SSP (Secretaria de Segurança Pública do Estado) obtidos via Lei de Acesso à Informação.
O ex-PM, que hoje atua com assessoria jurídica e parlamentar, defende o modelo de segurança pública alinhado à justiça social. “Significa compreender que a proteção da sociedade não se efetiva unicamente através da repressão, mas pela conjugação de ações que envolvem a garantia de direitos fundamentais, a inclusão social e o fortalecimento das instituições democráticas”.
Prior fala ainda que a segurança pública exige não apenas preparo técnico, mas também o fortalecimento de políticas públicas que valorizem o policial enquanto trabalhador. “Com suporte psicológico adequado, atualização pedagógica constante e um ambiente de trabalho que respeite sua dignidade, de forma a mitigar a lógica de confronto e promover uma atuação mais eficiente e menos letal”.
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