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TBT DO DIÁRIO: Bebê diabo do Grande ABC traz luz a tabu da ciência de 1975 e de hoje

Diário relembra o famoso caso do bebê diabo relatado pelo Notícias Populares e esclarece pontos obscuros daquela série de reportagens

Lays Bento
14/09/2023 | 13:39
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FOTO: Reprodução/Notícias Populares

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Há quase 60 anos, até que ponto uma anomalia óssea registrada na maternidade poderia reunir pessoas em frente a um hospital de São Bernardo, assustar o Grande ABC e toda São Paulo com exorcismo e até sequestro? Em reflexões e entrevista com especialistas da comunicação e medicina, confira o caso da região repercutido pelo sangrento Notícias Populares.

Fundado em 1963, o jornal Notícias Populares fez sucesso a poucos centavos, com o preço na metade dos demais veículos impressos em circulação. “Já existia o latente para o popular e a área policial. Havia outros componentes, tanto que a primeira notícia foi sindical, com um restante para o apelo operário e talvez até donas de casa”, afirma José Luiz Proença, jornalista aposentado e editor do Notícias Populares na época da publicação do misterioso caso.

No caráter de também professor aposentado, Proença assegura que o modelo de notícia polêmica, que choca e logo morre no esquecimento (fait divers), é ponderante há séculos e indicava justamente o caminho de que o caso bebê diabo, da mesma forma súbita que nasceu, brevemente sumiria das rodas de assunto e das páginas.

Só que, na manhã seguinte do 11 de maio de 1975, na segunda que sucedeu o Dia das Mães, a edição desapareceu das bancas. O chefe de circulação, profissional incumbido de rondar ao meio-dia os pontos de venda e redistribuir as edições para aqueles com pouco estoque, retornou à redação incrédulo do fato, mas com a certeza de que a manchete “Nasceu o diabo em São Paulo” era a explicação.

“Naquele momento, ninguém que ouviu sobre o sucesso das vendas ficou feliz. Mas mandamos um repórter para continuar a cobertura”, comenta ele.

E foi assim que, até pela visibilidade impulsionada e publicada pelo NP, acreditava-se na região que, de fato, nascera “uma estranha criatura, com aparência sobrenatural, com todas as características do diabo: (...) corpo totalmente cheio de pêlos, dois chifres pontiagudos na cabeça e um rabo de aproximadamente cinco centímetros”.

No dia seguinte à manchete avassaladora, a ida do NP foi ao Hospital São Bernardo (a instituição municipal indicada pelo NP) - que nada detalhou. Mas a desconfiança popular só cresceu com o ocorrido e a atitude “preocupada” do então secretário municipal da Promoção Social, Enzo Ferrari, em percorrer todos os hospitais da cidade para distribuir nota oficial que desmentia o boato.


Já a partir do terceiro dia, cartas chegavam e leitores que diziam ter novos desdobramentos apareciam na redação do Notícias Populares. Com tais colaborações (e um pouco de imaginação), o recém-nascido já até ameaçava enfermeiras por não fechar as janelas do quarto hospitalar, andava em telhados na região e abordava taxistas em avenidas são-bernardenses pedindo para ser levado ao inferno.

No decorrer do tempo, com uma história enredada em início, meio e fim, por praticamente 1 mês as notas do NP cobriram pessoas enlouquecendo, visita ao bebê liberada em outro hospital particular (desde que acompanhadas de um crucifixo), até o momento em que anunciaram o sequestro do elemento central da história.

Um dos textos que daria fim à cobertura (1 de junho) afirmava que, amarrado e a ser queimado, fanáticos e religiosos iriam “matá-lo de forma horrível num lugar distante e deserto de uma cidade da Grande São Paulo”.

“Como propus em tese na USP, existe o determinado momento em que o leitor rouba o jornal do jornalista. Foi o caso do bebê diabo, que não pegamos a cobertura jornalística como lenda, mas acontecimento. Digo que cobrimos uma verdade da mente… estes fantasmas existem no imaginário das pessoas, porque elas buscam uma versão de si mesmas”, pondera Proença.

Responsabilidade e os bastidores da difusão da história


A cobertura de um dos casos mais emblemáticos do antigo jornal paulista foi por um triz para Proença: ocupando o segundo posto mais importante na hierarquia da equipe, o de secretário da redação, este não era o plantão de final de semana de José.

Entretanto, pelo que conta, o jornalista autor da primeira notícia sobre o caso era Marcos Antonio Montadon, um repórter que cobria temas diversos (Editoria Geral) e que, diferente de boa parte do mercado à época, entrou na redação em uma leva de jornalistas mais experientes. “O Montadon veio da Folha de SP. Então, é incerto se a chefia passou para ele esta pauta por acaso ou de fato pela capacidade de escrever histórias”, comenta.

Como relembra Proença, naquele domingo, a pauta principal caiu - jargão jornalístico para o surgimento de um espaço em branco justamente onde se estamparia a capa do periódico. E, após ouvirem rumores do nascimento de um bebê com anomalias físicas no Grande ABC, o jornalista em questão enviou o texto para aprovação do editor em formato de crônica, mas “o formato ganhou uma forma taxativa, principalmente com o título ‘Nasceu o diabo em São Paulo’”.

A partir daí, do dia 11 de maio a 4º de junho de 1975, o espaço seria para o caso. Segundo José, dois repórteres da equipe moravam em São Bernardo e passavam no hospital municipal da época antes dos expedientes para coletar as opiniões do povo. A trama começou no ABC, mas em breve ganharia destaque para a capital paulista (Vila Nova Conceição), Marília e até a Baixada Santista.

Para contextualizar como o noticiário do sangrento Notícias Populares era produzido no período, a história da ilustração diabólica também é lembrada. O ex-editor relembra a curiosa elaboração das imagens associadas ao bebê diabo nas edições: com uma fotografia infantil resgatada do arquivo do jornal e tinta guache, nasceria a personificação que aterrorizou padres, munícipes e leitores.

A ideia para a representação fantasiosa teria vindo de uma familiaridade do ilustrador de nome artístico “Passe” com cães. O profissional teria estreado no jornal, por exemplo, já com cachorros falantes presentes nas sátiras das matérias de beleza.

NASCEU OU NÃO?

Explicações à moda antiga

De acordo com os estudos publicados no livro “Dicionário temático do ocidente medieval”, nem mesmo o diabo, uma figura de oposição contra Deus e o bem, nasceu com rabos e chifres. Foi no século XIII em diante, na verdade, que a figura de um anjo caído ganhou elementos animais (rabo, corpo peludo e garras de ave) para representar de alguma forma os terrores e punições infernais.

Entretanto, sobre a conclusão popular e do NP de que nasceu um bebê diabólico, os rumores estavam a um passo do tomado como verdade: “recebemos, aliás, uma carta anônima que um louco ou um médico mesmo explicava que haviam crianças que nasciam peludas por uma taxa percentual”, pontua Proença.

Segundo o suposto médico (que não dava pistas nem mesmo de ser funcionário do hospital são-bernardense em questão), tudo começou porque o feto sofreu descargas magnéticas negativas em gestação. E assim, depois de constatado o quadro no nascimento, foi uma enfermeira a primeira a dizer que o bebê parecia o diabo.

Esta não seria a única explicação dada para um nascimento tão peculiar. Em busca de razões, o imaginário popular regional prontamente associou o suposto aspecto físico à religião. De acordo com o texto inicial, o NP apurou: "parece que tudo começou na Semana Santa, quando o marido da mulher, que é muito religioso, convidou-a para ir à igreja ver a procissão. A mulher, grávida, bateu com a mão na barriga, e respondeu indignada: não vou, enquanto este diabo não nascer”.

Além da fé, para alguns, a explicação para o nascimento do suposto diabo encarnado era culpa do gênero. O próprio leitor do NP Danilo Ravanelo, na época pároco da Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, testemunhou na edição de 15/5/1975 que “tudo era fruto da imaginação”, que não dava conta dos atendimentos de moradores realmente desesperados, mas também que “a vítima preferida do diabo são os homens”.

1975 e hoje à luz da ciência

Rafael Carboni, ortopedista e cirurgião de coluna vertebral, que também é coordenador do Grupo da Coluna no Hospital Estadual Mario Covas de Santo André, não descarta a possibilidade de que um bebê realmente tenha nascido com uma condição conhecida como Mielomeningocele, ou espinha bífida, no período.

Inclusive, segundo artigo do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), este ainda é o defeito congênito mais comum envolvendo a medula espinhal.

A má formação na coluna ocorre no desenvolvimento fetal e intra útero nas primeiras semanas de gestação. Distante dos palpites publicados pelo NP, a suposta doença estaria associada a fatores genéticos e a deficiência de ácido fólico durante a gestação.

“Muito provavelmente o caso foi associado a uma lesão baixa, bem no fechamento da coluna, ou seja, próximo ao cóccix. E como não tem o fechamento no tubo por onde passam os nervos, fizeram suposições. A exteriorização deles, envoltos ou não, por uma membrana, assemelhou-se ao nascimento de um rabo”, explica.

O ortopedista esclarece que para a suposta criança de 1975 e nos pacientes atuais, a depender do local na coluna com má-formação, as consequências variam no sintoma neurológico, principalmente com alteração motora dos membros inferiores e funcionamento da bexiga.

“Mesmo com os últimos avanços da tecnologia para o tratamento intrauterino, algumas vezes não é possível tratar as sequelas mas amenizá-las”, comenta dr. Rafael sobre a utilização de fisioterapias, órteses e outros tratamentos ortopédicos a fim de corrigir as sequelas das lesões dos nervos decorrente da mielomeningocele.

Para ele, a única certeza é que a probabilidade de uma condição em que o bebê nasça com má formações no crânio (chifres) associados a pelos, pele avermelhada e ainda uma mielomeningocele é extremamente improvável.

“Ainda, principalmente no Brasil, vejo dificuldade ao acesso, tratamento e mesmo com os preconceitos. Mas acredito que principalmente a inserção está melhorando, as pessoas estão sendo devidamente inseridas no local ao qual elas nunca deveriam ter sido excluídas” finaliza o ortopedista que aponta, para caminhos diferentes dos de 1975: o destaque na mídia para as paraolimpíadas, a inserção de bons profissionais PcDs no ambiente de trabalho e a acessibilidade deste público para equipamentos e nos espaços públicos.

*Existente desde 1958, o Diário do Grande ABC, escolheu não repercutir o caso à época - focando na cobertura política, econômica e social; longe do viés sensacionalista que perturbou os envolvidos no caso bebê diabo e população local.




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