ouça este conteúdo
|
readme
|
O laudo da morte, assinado pelo médico-legista Harry Shibata - o mesmo que certificava morte a tiros em confronto com a polícia de guerrilheiros assassinados sob tortura nos poroes -, atesta que Fleury morreu por afogamento seguido de parada cardíaca. O genro do delegado, o médico Joao Alfredo Castilho, casado com sua filha Beatriz, também o examinou e confirmou à família a versao oficial. Maria Isabel afirma que acredita nos exames feitos por Shibata e pelo genro, mas acha que o mais prudente, para tirar qualquer dúvida, teria sido a polícia seguir os trâmites para situaçoes do gênero. Em caso de morte violenta, acidente incluído, a autópsia é obrigatória.
Isabel afirma que nao poria nenhum obstáculo à autópsia, cuja ausência alimenta dúvidas até hoje. Amado por seus colegas e odiado pela esquerda, Fleury era uma figura polêmica e um arquivo ambulante da repressao. Nenhum outro policial, em qualquer período da história do país, incorporou com tanta convicçao e brutalidade o Estado repressor - tanto contra delinqüentes quanto para ativistas políticos que ousaram desafiar a ditadura militar. A autópsia teria evitado as dúvidas.
Quem tomou a decisao de nao realizá-la foram o entao secretário de Segurança, desembargador Otávio Gonzaga Júnior (falecido), o ex-delegado geral Celso Teles e o entao chefe do IML e diretor do Instituto de Criminalística, Lúcio Vieira. O inquérito policial diz que Fleury caiu na água ao tentar passar para seu barco, o Adriana I, que estava ancorado no píer de Ilhabela ao lado de duas outras embarcaçoes.
Ele voltava de um jantar com a mulher e um casal de amigos e parou no convés da lancha Cabo de Sao Tomé para tomar a última dose de uísque com o grupo de amigos antes de se recolher. Estava feliz, na viagem inaugural do barco que acabara de comprar. Isabel e ele fizeram uma parada de 20 minutos e depois decidiram se recolher ao Adriana I. Fleury ajudou a mulher a passar para o segundo barco, o Patras, e, repentinamente, caiu entre as duas embarcaçoes, despencando de bruços no mar. Estava sendo arrastado por uma correnteza fraca, quando o marinheiro Gilberto José da Rocha, advertido pelos gritos de Isabel, mergulhou, empurrando-o para a superfície. Foi içado do mar com a ajuda dos amigos e permaneceu vivo, segundo Isabel, por cerca de 5 minutos.
Mas nao falou nada durante esse tempo. ``Ele se estrebuchava e se debatia muito', conta Isabel. O delegado vomitava e espumava. Quando o médico Mathuzalém Fagundes Vilela chegou, diz a viúva, o delegado estava morto, mas ele ainda o levou para a Santa Casa de Ilhabela. Era madrugada de 1º de maio de 1979 e, quando a notícia se espalhou, muita gente se perguntava: ``Quem matou Fleury?' Adversários e grande parte dos policiais que trabalharam com ele nao acreditam no acidente. A maioria é adepta da tese de que houve uma conspiraçao de direita para eliminá-lo, embora até hoje nao tenha surgido indício que ampare a suspeita. Apesar dos exageros alimentares e alcoólicos, Fleury era um homem saudável. Um mês antes, havia feito check-up e os exames nao apontaram anormalidade. Era também um bom nadador.
A suspeita é a mesma que a esquerda alimenta. O homem que sabia de todos os segredos da repressao - o destino da maioria dos 154 presos políticos desaparecidos, acordos, barganhas, açoes clandestinas, financiamento da repressao por empresários - nao poderia desaparecer em circunstâncias tao prosaicas.
``Acredito que ele teve um mal súbito e deu o azar de cair na água. Poderia ter caído no convés do barco', diz Isabel, que assistiu a tudo. ``Meu pai era de extrema confiança dos órgaos militares. Jamais o matariam para queimar arquivo', diz o filho de Fleury e também delegado, Paulo Fleury.
``Logo depois do enterro, policiais que trabalhavam com ele desceram para Ilhabela. Vasculharam tudo por lá durante uma semana e nada encontraram. Eu mesmo procuro uma pista há 20 anos, mas até hoje nada encontrei', diz Paulo Fleury. As suspeitas vao de um sofisticado envenenamento a versoes folclóricas, como a de que quando Fleury, empurrado, caiu na água, um homem-ra mergulhou e aplicou em um de seus pés uma injeçao com um mortal líquido russo. ``O Fleury era perseguido diariamente por um detetive inglês - o Johnny Walker', ironiza o delegado Paulo Bonchristiano, que foi do Dops ``Ele bebia duas garrafas de uísque por dia', diz Bonchristiano, que acha plausível a versao do acidente. O filho de Fleury revela que grande parte dos documentos que seu pai guardava num armário do antigo Departamento Estadual de Investigaçoes Criminais (Deic) _ do qual era diretor quando morreu - desapareceu. Foram retirados, segundo ele, por um policial que trabalhava com Fleury no Deic, Carlos Henrique Perrone, que morreu há três anos, de problemas cardíacos. ``Nao sei direito por que os papéis foram retirados. Provavelmente para proteger a polícia', diz Paulo Fleury. Ele lembra que andou atrás da papelada no Deic e descobriu que o investigador havia feito uma triagem nos documentos.
Paulo Fleury diz nao acreditar que seu pai guardasse documentos que pudessem comprometer a repressao. A maior parte das informaçoes estaria na sua memória.
Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.