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Ratton prepara longa sobre a Rádio Favela de BH
Do Diário do Grande ABC
26/06/2000 | 16:05
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Helvécio Ratton passou o fim de semana muito ocupado em Belo Horizonte, realizando testes para selecionar o elenco de seu novo filme. "Uma Onda no Ar" começa a ser rodado só no início do ano que vem, mas o diretor, paralelamente à captaçao de recursos, segue trabalhando no roteiro, buscando os atores e técnicos. Ratton nao está parado.

Será um filme especial ou, em todo caso, muito diferente de "Amor & Cia.", a obra precedente do diretor, baseada em Eça de Queiroz. Em "Amor & Cia.", com Patrícia Pillar, Marco Nanini e Alexandre Borges, Ratton tratou de temas como amor, amizade e adultério.

O filme, ambientado no século passado, exibia indiscutível acabamento técnico e artístico, com produçao cuidada. Ganhou até o prêmio de melhor filme íbero-americano no Festival de Mar Del Plata (o júri era presidido por Abbas Kiarostami, o magnífico), sem convencer integralmente a crítica. Foi visto com reticência pela crítica. Isso nao diminui a expectativa diante de "Uma Onda no Ar".

Os documentários de Ratton sao bons, "A Dança dos Bonecos" é simpático. O diretor merece crédito. Além desse crédito que ele merece, há o interesse despertado pelo próprio tema do filme. "Uma Onda no Ar" baseia-se na Rádio Favela de Belo Horizonte. Criada nos anos 80 por um grupo de 50 amigos, a rádio localizada na Vila Nossa Senhora de Fátima, uma das 11 que compoem o Aglomerado da Serra, a fatia mais pobre da zona sul da capital mineira, sofreu todo o tipo de pressao e perseguiçao até ser reconhecida e legalizada como rede educativa pelo governo. Foram mais de cem batidas policiais que levavam a rádio a mudar de endereço, com freqüência, e quase tantos processos. O reconhecimento veio em janeiro deste ano, quando o ministro das Comunicaçoes, Pimenta da Veiga, assinou a portaria que legalizou a Favela FM (104,5).

Fama internacional - Nesses quase 20 anos, a rádio, que começou pirata em 1981, tornou-se internacionalmente conhecida, menos por sua longevidade e mais pelo trabalho social desenvolvido nas áreas pobres de Belo Horizonte. A Rádio Favela, pertencente à Fundaçao Cultural Educativa e Comunitária da cidade, é administrada por moradores da vila. Seu compromisso é com a realidade humana e social das favelas na zona sul, mas ultimamente ela conseguiu diversificar seu público, sem trair o objetivo original, a ponto de ser, segundo dados do Instituto Vox Populi, a quarta em audiência na Grande Belo Horizonte.

Três vezes foi premiada pela Organizaçao das Naçoes Unidas (ONU), em reconhecimento às campanhas feitas contra as drogas. Como se nao bastasse, a rádio tem toda uma atividade de recuperaçao de marginais. Um ex-bandido do morro é hoje repórter na emissora. Ratton está verdadeiramente empolgado com o projeto do filme. Conta que teve aprovaçao e assessoria de Misael Avelino dos Santos, diretor de Programaçao da Rádio Favela, e da equipe toda.

"Gravei 150 páginas de texto com eles, ouvindo histórias que me forneceram a base para o roteiro". Embora se tenha exercitado como documentarista no início de sua carreira, o objetivo do diretor nao foi fazer um documentário sobre a Rádio Favela. Ratton partiu para a ficçao. "Baseei-me no fait divers e fiz uma adaptaçao", conta ele. Um dos programas de maior sucesso da rádio chama-se "Fala, Corno", em que só os maridos traídos podem fazer solicitaçoes musicais. Cada um deles tem de se identificar como traído e contar sua história, o que transforma o programa em "consultório psicanalítico a céu aberto", define o diretor.

A rádio também veicula palavroes, nao aqueles cabeludos, mas os triviais, como o que indica "fezes". Tudo isso é uma festa para o público jovem, o que mais sintoniza a emissora. Ratton arrisca uma interpretaçao: "Jovem é rebelde por natureza e a rádio vem ao encontro de seu desprezo pelas normas e convençoes". As 150 páginas de material colhido em entrevistas foram transformadas em roteiro por Ratton, em parceria com Jorge Durán. O roteiro é centrado num grupo de quatro personagens, acompanhados em dois tempos - no começo dos anos 80 e hoje -, "de forma intrigante e criativa", garante o diretor.

Nao há por que duvidar. Ratton destaca outro fator decisivo - nesses anos todos, a rádio tem sido um território para a expressao do movimento negro. Grupos de hip hop, rappers, todos encontram uma vitrine na Rádio Favela de Belo Horizonte. Desta maneira, diz o diretor, o "No Ar" do título tem também outro significado - quer dizer "Uma Onda Noir".

Nos dois tempos da narrativa, os personagens centrais ora têm 18 anos, ora estao chegando aos 40. Ratton realiza os testes de seleçao de elenco buscando atores nessas duas faixas. Para contar sua história com pé no real - "Uma fantasia embasada na realidade", define -, ele precisa de rostos novos. Nao quer saber de atores globais, de gente muito conhecida do cinema, da televisao ou, mesmo, do teatro. Quer desconhecidos. Acha que só assim o público vai perceber o que há de original e verdadeiro no material humano e social do filme que pretende dirigir.

Captaçao - "Uma Onda no Ar" está orçado em R$ 1,8 milhao - um orçamento até barato, nestes tempos de produçoes inflacionadas do cinema brasileiro. Ratton quer filmar em super 16, até para ter liberdade de rodar na favela. Mas ele conta que pretende filmar lá só as externas. "Os interiores vao ser integralmente reconstituídos em estúdio", conta. O super 16 ainda é usado por outro motivo. "Quero ver se consigo com este filme uma textura mais áspera da imagem; acho que tem tudo a ver com o que pretendo dizer".

Por enquanto, o diretor conseguiu captar só metade do orçamento previsto. Os parceiros que já embarcaram no projeto sao a Usiminas, o Banco Rural, a Telemar e o Prodemgi. Ele tem até o fim do ano para captar os 50% restantes. Em "Amor & Cia.", até por tratar-se de uma adaptaçao literária de um autor considerado clássico, a linguagem era mais comedida. "Quis ser mais elegante, mais irônico", que explica as diferenças de tom do filme anterior. "Quando falava de relaçoes sociais empregava a farsa, quando tratava dos problemas do casal, era mais melodramático".

Foi Kiarostami quem lhe fez ver isso, numa conversa após a premiaçao, na Argentina. Mas as diferenças de tom já haviam sido assinaladas no Estado. Um filme pode combinar diversos tons; o importante é que, além de adequados ao que se pretende dizer, eles também se harmonizem entre si, de forma a nao criar grandes desequilíbrios. Faltou esse equilíbrio no cuidadoso "Amor & Cia".

Agora, o estilo, a técnica, o tom - tudo é diferente. "Uma Onda no Ar" marca "o meu diálogo com o Brasil de hoje", diz Ratton. Entre os fatores que o fizeram interessar-se pela experiência da Rádio Favela de Belo Horizonte está o fato de que a emissora é livre - nao está ligada a nenhum grupo político ou religioso. "É uma história bonita de resistência e solidariedade", define o diretor, entusiasmado com a riqueza do material de seu novo filme.




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